terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Boneca

 Hoje é um dos Lares da Terceira Idade que existe em Montemor-o-Velho, mas há uns anos era um hospital, e o seu nome  Hospital de Nossa Senhora de Campos. Era um óptimo edifício com boas instalações para a época, com enfermarias arejadas e bem iluminadas pela luz do sol, e no seu interior albergava o necessário para o fim a que era destinado, devolver a saúde a quem se via privado desse bem. E eram muitas as pessoas que por ali passavam. O Sr. Dr. Afonso mandava-as para o hospital porque ali ele as observava todos os dias, quando pela manhã ia ao hospital com esse fim. E outras morriam, mas ele também sabia que ali tinham carinho e amparo até aos últimos momentos, proporcionados pelas Irmãs de Caridade duma Ordem Religiosa que ali habitavam em semi-clausura e que, dia e noite cuidavam dos doentes, só pelo amor a Deus.        Algumas nunca esquecidas, a Irmã Maria de Jesus, um tanto mais tarde a Irmã Nazaré e outras que deixaram saudades.Eram as Irmãzinhas... Faziam serviço de enfermagem porque eram enfermeiras, mas também eram elas que piedosamente fechavam os olhos e vestiam os que ali terminavam os seus dias, e depois rezavam em sua memória.  

Numa cama das enfermarias mais pequenas, estava alguém, não sei a idade, era uma menina, era uma rapariga, não sei. Só avaliei a idade, quando anos mais tarde lhe vi aparecer entre o cabelo brilhante e escuro, alguns cabelos brancos.    
Foi uma criança que nasceu altamente deformada, permanecia encolhida na cama, rastejava mas nem sequer de joelhos. A voz também tinha um timbre estranho, e presumo que teve mentalidade infantil até muito tarde. Como todas as crianças era alegre, conhecia toda a gente e a todos chamava pelos nomes e bem alto.
Dizia-se que era de família pobre e natural de Tentúgal, a mesma naturalidade do Sr. Dr. Afonso. Ele terá conhecido os pormenores, e conduído "trouxe-a" para o hospital. As Irmãzinhas a acarinharam, cuidaram dela, ensinaram-lhe o que puderam, e ali foi a sua casa para sempre. Era a  Ermelinda! Toda a gente a mimava, se nem sempre com algo material, mas uma palavra, uma festinha nunca falhava.
Eu vi a Ermelinda porque a minha avó foi para o hospital em perigo de vida, e ficou numa cama ao lado da cama dela. Eu era miúda, teria quase seis anos, e quando a minha avó melhorou, a minha mãe levou-me com ela numa das visitas. Eu tinha uma boneca com cabeça de loiça, com cabelo natural e olhos que abriam e fechavam, e um vestido de sêda amarela. Eu adorei aquela boneca quando abri a caixa que o meu pai me entregou, na volta duma ida a Coimbra.
Entendi que a devia levar para mostrar à minha avó, e a minha mãe não achou mal. Quando me aproximei das camas, a Ermelinda deu um grito muito alto, de contente, e pediu para agarrar a boneca. Os seus lindos olhos negros brilharam de alegria ao pegar na boneca, que de boa vontade eu lhe coloquei nas mãos e deixei-a ficar com ela durante o tempo da visita.  O pior veio depois, para ela ma devolver... lágrimas, gritos, agarrada à boneca, e a Irmãzinha a falar-lhe, a tentar fazê-la compreender, o que era difícil, talvez até impossível, digo eu agora. Entretanto, já não era só ela que chorava...     
E eu embora criança também senti pena dela, mas a boneca era minha e eu queria trazê-la, e trouxe.
Há noite contei ao meu pai com todos os pormenores o que tinha acontecido, e disse logo que nunca mais levava a boneca quando voltásse ao hospital. 
O meu pai respondeu com um conselho, que no caso dele, era uma ordem: 
- quando voltares ao hospital, levas a boneca para a dares à Ermelinda. 
Foi a minha vez de chorar, e de manifestar a minha recusa, então se eu gostava tanto dela...
Ele argumentou de modo a que eu, também criança, entendêsse sobre a vida daquela menina, e eu deixei de chorar.
-Ele continuou, ela precisa da boneca e tu vais levar-lha e eu compro-te outra. 
Então porque não lhe dou essa que me vai comprar? dou-lhe essa, pronto.
- Não, porque ela só conhece esta, e é desta que ela gosta, e tu vais ficar contente por lha oferecer! Tenho a certeza.
E assim foi na verdade, tudo como o meu pai me havia dito. Fomos ao hospital, dei um beijinho à boneca, e a sorrir coloquei-a nas mãos da Ermelinda dizendo bem alto, toma! é para ti. E fiquei contente por a deixar para ela.  
Desta vez, lágrimas? Só nos olhos das Irmãzinhas, mas desta vez de alegria.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Diálogo

 A Lua já não era visível.As estrelas confundiam-se com a claridade do alvorecer, amanhecia. O sol subia no horizonte e afagava os ornatos superiores do maior edifício de Montemor-o-Velho - os Paços do Concelho. O sol chamou-lhe Palácio e enquanto o acariciava com o seu calor e despertava para mais um dia, disse-lhe:

- Sabes Palácio, tenho pressa em iluminar-te, sabes porquê?
- Não, diz-me...
- Porque és bonito! És um Palácio soberbo!
- Gosto do galanteio - retorquiu - eu já tenho muitos anos, estou de pé desde 1892. Já vivi muito, tenho muitas recordações, boas, menos boas e, saudades. Mas os teus elogios não apagam as minhas mágoas...
- Mágoas? Tu?! - inquiriu o sol - queres desabafar?
O grande palácio, um tanto austero, tomou então da palavra com uma calma triste:
- Esta Praça, que se chama da Républica, está mais desolada que um largo duma pequena aldeia remota. E no entanto, tem um desenho tão belo, dela até se vê o Castelo, que é a coroa da Vila ! Mas tão árida, nem uma flor, ou folha verde, nem uns jactos d’água que a enfeitem, nem população, é apenas um Largo, que tristeza...
- Ora, Palácio, são os efeitos da crise, que há-de terminar... Não! O que te digo é anterior à crise. Sou velho mas ainda consigo destrinçar. Aos domingos e dias feriados esta Praça é sinistra de tão vazia. Nem calculas a tristeza que me invade nesses dias. Nem um restaurante, nem um café aberto...Lembra um suicídio colectivo, um êxodo total! É então que na minha solidão recordo o passado, quando os bancos à minha porta eram poucos para os trabalhadores que aí se sentavam para descansar e conversar, nas tardes de domingo! Nos passeios que me contornam, acomodavam-se também as mulheres que vendiam tremoços e castanhas, e os engraxadores com a respectiva caixa para o seu trabalho. Formavam-se grupos, que falavam, havia vida... No café Girão, pequeno mas acolhedor, os homens preguiçavam na explanada sobre o passeio, enquanto o empregado, (o Manel do Café) impecável no seu casaco branco e no seu trato, os servia incansável.  Mesmo na minha frente, o Café Mondego, pequenino, o Café do Henrique, o inventor das Espigas Doces, essa delicia!
- Um inventor? Em Montemor?
- Há! Sim, ele devia ter lido o Fernando Pessoa - "quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce!" Sonhou e tornou realidade um doce para Montemor, como era então conhecido. Que saudades desses tempos. O meu coração de velho não esquece, e agora nada me alegra...
- Queria animar-te, meu amigo. Mas as minhas histórias são iguais às tuas. Como sabes, eu, um amigo dos turistas, vi há tempos um carro cheio deles quedar-se à entrada da Vila para as fotografias da praxe ao magnífico Castelo. Depois dirigiram-se para o centro da Vila. Era Domingo e tudo estava fechado. Deram meia volta. Segui-os num dos meus raios até Tentúgal, onde se sentaram a uma mesa de café a saborear pastéis e queijadas.
- Não digas mais...
- Voltas amanhã?
- Claro, todos os dias!
- Mas promete-me uma história mais feliz....

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A bofetada, e os óculos no chão

 Guardo na memória a festa que era para mim fazer anos, quando era menina e depois na juventude. Era tudo tão pouco, tão modesto, e no entanto era enorme no meu conceito. Resumia-se ao jantar que nessa noite era na sala. E a comida era sempre igual ano após ano, canja, arroz escuro dos miúdos do frango, e o dito cujo com batatinhas à volta, assado no forno. Como sobremesa arroz-doce. Prendas? Não me recordo. Apenas uns postais ilustrados enviados por algumas amigas. Mais tarde algumas prendas então, mas já com vista ao enxoval, jámais de carácter superflúo. Gosto de recordar, faz-me sorrir.

Foi há muitos anos, neste dia em setembro. Fui a Coimbra, e viajei no autocarro da carreira. No regresso vinha "o meu autocarro" e mais outro igual que era o do desdobramento, este por acaso vinha à nossa frente. Numa curva travou bruscamente para evitar bater numa camioneta que lhe surgiu de frente, e como a estrada estava molhada, atravessou-se na via. O outro também parou e não ouve consequências, porém quando o motorista se dirijiu ao da camionete de carga este começou a barafustar, e pregou-lhe uma bofetada. Os óculos voaram e claro partiram-se. Quando segundos depois ali chegámos não havia espaço para passármos. Com aquela atitude maluca, tornou-se necessário chamar a polícia, e sem telefone a demora era evidente. (estávamos nos anos sessenta) Ficámos ali retidos no meio dos campos. Então a alternativa era entrar numa azinhaga ir passar por uns pequenos povoados, para voltar à estrada um pouco mais adiante. E lá seguimos por caminhos tortuosos e estreitos de terra esbranquiçada, aos solavancos sobre o piso irregular. As pessoas surgiam ás portas, admiradas porque ali não passavam carros. Iamos muito devagar, a camionete quase entalada entre barreiras de terra e silvas e a espaços curtos havia uma pedra enorme no chão. Então o colega do motorista descia e ia tirar a pedra. Daí a pouco, de novo -" ó Isaías lá está outra, vai tirar." Nós riamo-nos, e parodiávamos o facto, chamávamos-lhe excursão sem aumento no preço do bilhete. E mais pedras se sucederam e o Isaías sempre as foi retirar, até finalmente voltarmos à estrada normal, verificando que tínhamos andado tanto mas na realidade estávamos a poucos metros das camionetes imobilizadas. Sucedeu-se um brado  de espanto, estávamos quase no mesmo sítio,  mas agora de estrada livre era seguir em frente. À boa disposição inicial sucedeu a saturação, estávamos "fartas" de solavancos, e do pó que as rodas da camionete levantavam e  mesmo fechando as janelas não era possível evitá-lo, e agora tudo calado só queríamos era chegar a casa depressa, pois foram horas nesta aventura e já era quase noite.
Em Montemor a noticia tinha corrido mas da pior forma, dizia-se que a camionete da carreira tinha sofrido um acidente, falava-se num choque ; eu tinha por hábito e gosto, ocupar o lugar da frente (aquele que era reservado ao fiscal) por isso em minha casa foi o caos. Quando a camionete entrou no inicio da minha rua onde passava e não parava, eu vi logo um aglomerado considerável de pessoas à minha porta. Preocupadas esperavam, e acompanhavam a minha mãe que em lágrimas só pensava o pior.
Finalmente cheguei a casa, sã e salva! Pois, não nos tinha acontecido nada, mas neste dia de aniversário, o jantar que já tinha arrefecido, não soube como de costume.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Outros tempos

 Naquele Setembro no fim dos anos cinquenta, as festas da Feira Anual só terminaram no dia vinte cinco, dia do aniversário da Filarmónica. Havia um espaço no Largo da Feira delimitado para as festas, por uma estrutura de madeira pintada e decorada com  balões e pares a dançar de braços no ar. Tinha duas bilheteiras, porque era necessário pagar um bilhete para entrar. 

Findas as festas era tudo desmontado e guardado para o ano seguinte, para os bailes de São João e São Pedro em Junho e em Setembro para as Festas da Vila a tradicional Feira do Ano. 
Foi novidade o prolongamento até este dia, e também o facto do baile acontecer da parte da tarde. 
E assim pelas dezasseis horas já se ouvia o Tivoli-Jaz a iniciar a dança com o habitual passo-doble. O recinto também estava composto de gente, um baile era uma festa e ninguém queria faltar. E lá estavam sentadas as mães, que acompanhavam sempre as filhas, alguns pais também apareciam e juntavam-se em grupo aqui e ali, para conversarem e irem beber um copo de tinto ou um de igual capacidade mas de café.
A  Milena que era de Lisboa e estava de férias em casa das primas em Montemor, juntou-se à Lita. Quando nenhum rapaz as vinha buscar para dançar, dançavam as duas, mas era comum aproximarem-se dois rapazes que perguntavam "se queriam partir." Se queriam, aceitavam-nos para dançar, se não queriam, diziam não e era não.
Pelo fim da tarde entraram dois rapazes no recinto, a Lita viu-os e até reparou num dêles, mas não disse nada. Daí a pouco quando as duas dançavam, a Milena disse-lhe "olhe estão a dizer se queremos partir..." A Lita disse que sim, até  era aquele em que ela tinha reparado, que estava agora colocado para dançar com ela... Ele era mais alto, e assim não foi possível a ela observar-lhe a fisionomia; tinha um bom fato de tom pastel, camisa branca e gravata. Reparou na mão de pele clara, unhas cortadas limpas, um anel modesto de pedra azul num dos dedos. Dançaram duas vezes ele nada disse, só o habitual obrigado após dançar, e entretanto acabou o baile.
A Lita com a mãe encaminharam-se para a saída e  ela voltou a reparar naqueles dois, ali em frente no lado oposto da rua. Ele sentado numa Vespa grande, último modelo, de côr cinza metalizada, acionava o motor...     
Passados mais de dois meses numa segunda-feira perto das nove da manhã, quando a Lita se dirigia para o emprego a amiga Lurdes que já a esperava à janela do andar superior, desceu a escada à pressa e da porta chamou-a para a entrada da  casa, e disparou: - não sabe, mas você tem um apaixonado!!! Veio cá ontem, esteve com o meu namorado, lembrou-se do tempo em que ambos estudavam na Figueira, e veio ter com ele para lhe contar, e saber de si. A Lita ficou surpreendida, riu-se e perguntou, "então e quem é ele? " Obtida a informação, ainda fez que não se recordava, mas na verdade ela lembrou-se logo do rapaz com quem tinha dançado apenas duas vezes. A amiga fez-lhe o relato da conversa havida com o namorado dela e assim ficou a saber que ele já tinha 25 anos, era filho único, estava empregado, etc... bem, ficou logo com parte do historial  do tal apaixonado. Ele passou a ir a Montemor nas tardes todas de Domingo até ao Natal, mas nunca a via. Naquela altura os rapazes não se acercavam facilmente das raparigas, e ela aos Domingos só saia para ir à missa das onze, e de tarde passava o tempo a ler, ou a fazer renda. Depois na segunda-feira a amiga contava-lhe. E foi por ela que soube que iria receber uma carta no dia seguinte. Era um cartão grande de Boas-Festas perfumado e bonito, e numa caligrafia perfeita e bom português um pedido de namoro. (namoro daquele tempo,,, não a situação a que hoje chamam de namoro) 
Era hábito na tarde de Natal e na de Ano Novo as pessoas saírem de casa para visitar o Presépio na Capela do Hospital, e passearem estrada acima até à Sra. do Destêrro. Chegou assim a oportunidade de se encontrarem no dia de Ano Novo. Ela foi passear com a Lurdes, e eles apareceram como estava combinado, o Tó fez as apresentações, e com a namorada ao lado caminhou a diante, e eles seguiram-nos em passo lento. Passadas as banalidades de inicio de conversa, ele assumiu o assunto que ali o levara, disse-lhe que não era rico, era ferroviário, tinha deixado de estudar e também tinha sido leviano, até mesmo estróina, e também tinha tido uma namorada com quem estivera para casar, mas que tudo isso era passado e sem retorno. Ela ouvia-o com atenção  e agradou-lhe aquela franqueza, gostou de passear ao seu lado, mas não lhe quis dizer que o aceitava para namorar, no entanto prometeu que lhe responderia. Despediram-se; eles ficaram para trás, ela e a Lurdes continuaram o passeio agora de regresso a casa. Nessa altura ela voltou-se para a amiga e disse-lhe, "ele é elegante e simpático, mas é danado feio,,, parece o Antoine Quine." A amiga disse que não, mas era. 
Daí a dias começou "a guerra." Naquela altura os pais mandavam, e o pai da Lita que quando soube tinha ficado na expectativa, agora manifestou-se pela negativa, tinha sabido umas informações e disse-lhe que não aceitasse. Daí a uns dias a Lita recebeu uma carta dando-lhe conta do que se passava em casa dele, nem o pai nem a mãe queriam tal namoro, e havia ralhos constantes, mas ele estava disposto a enfrentar a situação, só queria saber o que ela tinha decidido...     
E os dois sem se verem mais, escreveram cartas assiduamente durante meses, até ao dia em que o pai da Lita soube da correspondência; ai, ai, ai, a Lita viu cair o Carmo e a Trindade... 
Bem, mas uma vez que o pai já sabia, ele decidiu escrever-lhe a pedir que o recebêsse porque queria falar com ele. Era costume o rapaz pedir ao pai da rapariga ordem para namorar. (à janela ou à porta, namorar em casa era só mais adiante...)
Com muito pouca vontade o pai acedeu, ouviu-o e até simpatizou com ele. Finalmente havia ordem para namorar, mas também alguns  deveres a observar. Era só aos Domingos de tarde e à noite, e às quintas feiras à noite, mas  em qualquer dos dias só até às nove horas, que era boa hora de recolher. 
Era moda os namorados trocarem alianças. Chamavam-se alianças de comprometidos, o que mostrava a quem via a dita cuja a brilhar no dedo, que aquela ou aquele jovem tinha namorado. Eram bonitas, grossinhas, de prata, adornadas a espaços, com umas flores de liz em ouro, ou douradas apenas. No interior gravadas, as iniciais dos respectivos nomes. Eles também trocaram as alianças. Mas foi a partir da "autorização" que o namoro caminhou para o fim, e não demorou muito.           
Começaram a namorar à janela do rés do chão, ela de pé no lado de dentro e ele do lado de fora sentado na tal vespa último modelo. Na esperança de vida melhor ele voltou aos estudos, à noite, e manteve o emprego. Era no principio e parecia que tudo estava côr de rosa, mas nem tudo quanto luz é oiro... Ás vezes ele fazia alusão ao casamento, e a Lita dizia não ter pressa, mas a verdade é que ela começou a têr mêdo do futuro ao lado dele. De vez em quando chegavam-lhe noticias nada agradáveis quanto ao comportamento dele, e ela não queria acreditar, mas ficava preocupada, e até uma Sra. idónea e pessoa de bem lhe disse com todas as letras "que ela ia ser uma desgraçada se casásse com ele..." 
Já era inverno, mas a tarde estava ensolarada e a Lita esperava pelo namorado, esperou, esperou, mas ele só veio à noite, deu uma vaga desculpa, mas o pior é que nos Domingos seguintes continuou a fazer igual.  
Naquela altura as inundações na Vila eram frequentes nos fins do Outono e Inverno, e a zona onde a Lita morava era das primeiras a ser alagada. A água cobria a rua e entrava no rés do chão das habitações, ficava um dia ou dois, depois baixava mas permanecia na rua, só deixando sêco um espaço diminuto duns setenta centímetros no meio da via. Toda a gente tinha uma tábua comprida que colocava à porta, na horizontal, de cima do degrau até ao chão seco, era uma ponte para poder sair de casa sem passar à água, e depois correr pelo meio da rua e pedir a Deus que não viesse nenhum carro, se não houvesse "outra ponte" por perto.
Naquele Domingo seriam sete horas, mas era noite fechada e a Lita recolheu a tábua. Ele chegou daí a pouco e como de costume a Lita chegou à janela; ele do meio da rua disse-lhe, "hoje é que isto está bonito, vou precisar dum telefone..." 
Estava especado a olhar e continuou, "então eu não posso ir para ali prá porta?" E ela com muita calma respondeu-lhe:- Não! Tivesses vindo mais cêdo! A tarde foi bem comprida! Sucederam mais umas trocas de palavras e ele dizendo-se ofendido, afirmou "então vou-me embora! Também não preciso disto!" Ao que ela corroborou; vai, vai ! Vai para onde estiveste durante a tarde! Olha, Vai e não voltes! Ele caminhou rua fora e ela fechou a janela e subiu as escadas a correr, entrou no quarto sentou-se na borda cama e desatou a chorar. Daí a pouco perguntou a si própria se estava a chorar com pena, ou com raiva? E o choro acabou. 
E a água secou, e a rua também, e numa tarde de sol ele voltou! Mas não encontrou a Lita... Encontrou uma carta a ele endereçada com meia dúzia de palavras dela. "Faz a vontade aos teus pais, e que sejas muito feliz"  Adeus. 
 

sábado, 11 de dezembro de 2021

Os Mêdos

 As pessoas cultivavam a superstição, toda a gente tinha algo de sobrenatural para contar, que alguém tinha visto. Falavam sem evitar que as crianças ouvissem, e assim eram elas (mais tarde) o veículo transmissor desses episódios então já apontados como verdadeiros. Estamos em Montemor em anos bastante recuados.

Na Vila haviam locais especiais onde "apareciam" os mêdos, e ai de quem duvidásse de tais afirmações. Na Rua Dr. José Galvão pelas dez horas da noite (hora dos mêdos) um caixão a rastejar atravessava a rua e, sumia-se num bueiro grande que existia encostado à casa do Fidalgo José Fortunato; hoje tudo  desaparecido, casa, bueiro e fidalgo. Outro local apontado era um pôço (de água) empedrado situado numa terra do mesmo Fidalgo, na estrada que liga a Vila à Barca, já perto da antiga Ponte.
Mas não menos assustador era a baixeira do Cano, frente à Quinta do mesmo nome, a caminho do Areal e do Moinho da Mata, e é aqui o local desta história:
- Mariana era costureira e ia costurar aos dias na casa das freguesas. Ia a pé e carregava a máquina de costura à cabeça, chamada máquina de mão, porque isenta de pedal, tinha uma manivela que era acoplada à roda e acionada pela mão da costureira. Começava o dia manhã cêdo e terminava ao entardecer. Ainda comia qualquer coisa, e só depois regressava a casa. E foi no regresso dum desses dias de trabalho em casa duma família no Areal, que ela se encontrou com a comadre Júlia também de Montemor, e juntas encetaram caminho animadas pela companhia recíproca, e um tanto apressadas pois ao longe já eram visíveis as primeiras estrelas pontilhando o céu, e também porque a baixeira do Cano lhes causava receios. E nesse sentido a conversa entre elas recaiu imediatamente nas aparições estranhas. "Eu nunca vi nada, dizia a Mariana, mas acredito que alguma coisa há-de haver, ao tempo que se fala nisto, isto já vem de trás... e tenho mêdo!" 
- "Pois, pois, dizia a comadre, eu também nunca vi nada, mas já a minha avó contava aquela da Galinha preta, grande grande, maior do que uma pessoa, batia as azas fazia barulho e vento que levantava o pó do chão. Eu tenho muito mêdo não gosto de aqui passar assim mais tarde, mas ás vezes  lá tem que ser..."
- Como a noite se aproximava, o filho da costureira ignorando que a mãe teria companhia, resolveu ir ao seu encontro. Ao vê-la ao longe, acompanhada, pensou numa brincadeira. Escondeu-se atrás duma árvore e esperou, deixou-as passar e em passo ligeiro mas leve foi atrás delas, aproximou-se bastante e quase encostado fêz um valente assôpro que naquele silêncio soou bem audível. Ambas deram um grito, a Mariana deitou a mão á máquina e em simultâneo agarraram-se uma á outra, para logo se soltarem e  desatarem a correr estrada fora sem olharem para trás. O rapaz que esperava uma risada e tal não aconteceu, já estava arrependido, e corria enquanto gritava "esperem, esperem, sou eu, esperem..."  Não esperaram nada, e só quando pisaram o chão da Vila e as fôrças começavam a traí-las, é que pararam e a mêdo olharam para trás.
E ali estava a razão de tanto mêdo, uma diabrura do filho da Mariana e afilhado da Júlia. Agora incrédulas quanto à situação que não esperavam, olhavam o jovem e não sabiam se haviam de ralhar, de rir, ou de chorar, pois o rapaz, arrependido, tinha perdido o riso, e um jovem triste faz pena. Decidiram-se  pelo riso, e quem sabe se depois disto não passaram a desvalorizar este género de mêdos que desde a infância acatavam?! 
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terça-feira, 16 de novembro de 2021

O Ti Tóino

Quando o Tóino e a sua Maria "caíram" na cama, depois dum dia inteiro atrás do gado na sementeira da terra nos moinhos velhos, ambos tinham a certeza de que o sono os tomaria pela noite toda. E tanto que ambos careciam de descanso, porque para o dia seguinte igual tarefa os esperava. Contudo, a Maria queria cozer a brôa de madrugada, porque iria ter com ele ao campo logo depois de fazer o almoço e a merenda para ambos e, queria levar broa mole para comerem com as batatas cozidas e a carne frita.  Receosa queixou-se do mêdo de não acordar cêdo. Mas o Tóino num português que era só dele, exclamou: - "sossega mulher, que à hora certa o mê cu dá sinal." Mas não deu... e ele também queria sair bem cêdo. 
No entanto, mesmo sem aquele despertador da sua confiança ele acordou, saiu logo da cama e acordou a mulher. 
Ainda estava escuro, ele foi ao curral dar alimento ao gado, e voltou para aconchegar o estômago com meia brôa rija feita em sôpas, regada com o caldo de feijão com couves que a mulher entretanto tinha feito ferver. 
Daí a pouco estava na estrada a caminho do campo de Montemor onde tinha algumas terras, e que distava alguns quilómetros da aldeia onde nascera e residia.
Ainda se viam algumas estrelas no céu, mas ele não tinha mêdo, ninguém fazia mal ao Ti Tóino, ele era grande e encorpado  mas também respeitador, e respeitado por todos, novos e velhos.
Segurando as vacas que puxavam o carro, ele as encaminhava de vagar, poupando-as para o dia de trabalho que iam ter a puxar o arado e as grades, e falava com elas: - "vamos lá castanhas, isto agora ainda é só passear..." A estrada estava deserta e ele lembrou-se duma cantiga e logo passou a assobiá-la de modo afinado.
Mas daí a pouco, "ai, ai, aí, com isto não contava eu" murmurou. "Pois, este malvado, hoje não me quis dar sinal à hora do costume; e então não é que estou a precisar de me "ir abaixar?!"  "E é que estou mesmo."
Parou o gado e meteu-se por uma terra que estava em poisio, tinha uns arbustos que encobriam a estrada, foi até lá e tratou de  "se abaixar..." No lusco-fusco que persistia deitou a mão a umas verduras, umas ervas, havia muitas e com elas procedeu à respectiva "higienização..."  Porém, só não gritou porque até lhe faltou o ar. Eram ortigas, ou ortigões machos ele não as viu, mas sentiu-as  em toda a plenitude. 
Amargurado voltou à estrada, e caminhou com o gado uma grande parte do caminho até chegar à Tasca da Leiteira. Entrou, pediu o mata bicho mas não bebeu, e de copo de aguardente na mão saiu logo e encaminhou-se para as traseiras da Tasca. Lá fez "o tratamento," respirou fundo algumas vezes e no fim, atirou o copo para dentro duma silveira que havia mais adiante, enquanto pensava "fica aí para sempre!, não queira o diabo que eu ainda venha a beber por ti pobre copo."    Voltou à Tasca para pagar, e três homens novos que lá estavam mostraram-se curiosos, se estava doente, etc... Ele não sabia quem eram, mas já os tinha visto algumas vezes e, fragilizado como estava, contou do que estava a sofrer. E o resultado em vez de compreensão foi uma rizada geral de mau gosto. Em baixa voz sugeriam alcunhas que iam rejeitando, até que um deles disse a alcunha que lhe ia assentar. Êle não esperou mais e, de braço erguido e punho fechado avançou para o trio que ao verem aquele homem a crescer para eles, se juntaram encolhidos com as mãos a proteger a cabeça.
O Ti Tóino parou, baixou o braço e disse ameaçador "os porcos quando roncam querem laváge, então aí a têm! "  E dito isto pegou no alguidar que estava em cima do balcão cheio de água para lavar os copos, e com a força dos seus pulsos fortes atirou-a com violència contra eles. 
A seguir pousou o alguidar e colocou o boné na cabeça para se ir embora, mas ainda parou a olhá-los. Incautos tinham ido embater nas tábuas que formavam a parede e um estava caído no chão molhado, era o autor da "melhor" alcunha.
Avançou firme, pegou-lhe pelo ombro e bruscamente levantou-o, mas com um safanão empurrou-o  desamparado para um banco. Depois falou-lhe, "sabes, eu não deixo nunca um homem no chão, se tens alguma coisa a dizer vem comigo ali pra fora." 
"Estás a ouvir ó fedêlho? Ouviste?"
Ninguém respondeu. 
O Ti Tóino encaminhou-se devagar para a porta, mas antes de sair ainda disse "é bem certo o ditado, quem se mete com fedêlhos sai cagádo! Mas comigo? Não! "    

sábado, 30 de outubro de 2021

Regresso por de mais tardio

 Não  só as conversas são como as cerejas, com as recordações também é um pouco assim.  

Foi num Domingo de Agosto. O sol começava a despontar, o dia ia estar quente e ir á praia era o sonho acalentado durante toda a semana.  Carro próprio era um  luxo de poucos, excepção apenas para quem o veículo era mesmo necessário por motivo profissional; mas havia a camionete da carreira.  A Empresa de camionagem Moisés Correia de Oliveira sediada na Carapinheira, assegurava a ligação diária de ida e volta entre Tentúgal e Figueira  da Foz. 
Aos Domingos havia desdobramento, era o termo usado para informar do reforço doutro autocarro que vinha logo após, já na certeza de que no primeiro não haveria lugar para toda a gente que estava na beira da estrada, nas paragens à espera. A empresa tinha dois ou três autocarros novos, maiores e barulhentos que bastava, e outros arrumados por velhice, mas aos Domingos, estes vinham também para a estrada com a palavra "Desdobramento" bem visível no vidro da frente.   Mesmo assim, não ficou para a história qualquer noticia de acidente.
E neste dia manhã cedinho as pessoas já formavam grupos na Praça da Republica enquanto esperavam. Ali estava gente de todas as idades, gente animada  todos com igual expectativa, a de viverem um dia diferente.  Cêstos no chão ao redor, bem cheios com o farnel, que o mar faz fome (assim diziam) esperando a camionete que as levaria até à Figueira para a praia, e a alguns homens para a tourada que ia haver nesse dia. 
O meu pai que ia para a pesca, e a minha mãe e eu que íamos para a praia embarcámos na primeira camionete (uma das tais mais novas) assim como as outras pessoas que ali estavam. O autocarro ficou logo lotado e o motorista seguiu o seu rumo sem parar. Ao aproximar-se das paragens diminuia a velocidade e com a mão fazia sinal aos passageiros que vinha aí o desdobramento. Só parámos para sair já na Figueira, encantadas com a rapidez da viagem. Até aqui tudo bem, na praia idem, idem;  enfim, um Domingo em beleza. O pior ainda estava para vir ao fim da tarde. 
Dirijimo-nos para o local da partida, era na Praça Velha  ainda não havia Terminal Rodoviário. Entretanto começavam a chegar os respectivos passageiros. Mas quais respectivos? Aquilo era um mar de gente que não parava de crescer. Estava já na hora de partir e a camionete  ainda não estava ali. Passou uma hora, todos pensávamos que não viria só uma, mas várias. Puro engano!  Veio só uma, e das velhas...!Algumas pessoas precipitaram-se aos empurrões e entraram. O motorista fechou logo as portas e informou pela janela, que voltava depois de ir levar aqueles passageiros, e arrancou. E ali ficou aquela multidão à espera. O tempo corria lento, já era noite fechada, a Praça mal iluminada, não se via ali ninguém da Figueira e o café ali existente já tinha fechado, os rebatos das casas e as  bordas do passeio serviram-nos de assento. Entretanto a camionete ia e voltava, o espectáculo era desolador, ninguém reparava em ninguém, era entrar à fôrça e de encontrão fôsse de que maneira fôsse, e logo a porta se fechava e de novo a camionete partia deixando para trás tanta gente ainda. E de novo  voltava, sei lá quantas vezes foi... Os ânimos começaram a exaltar-se, e a certa altura num dos momentos de mais um embarque, ouvimos alguém que gritava "anda aqui bulha, andam à pancada dentro da camionete, abra a porta quero sair daqui..." Pela janela atiraram umas ripas de madeira que havia pregadas no chão... Logo de seguida o motorista aflito deixou a camionete e foi a correr chamar a polícia que ficava sediada ali perto. E a policia veio.... mas já estava tudo calmo, o motorista retomou o volante  e a camionete lá se sumiu mais uma vez na escuridão. Ainda não foi nesta que tivemos lugar.
Não foram minutos, foram horas que ali estivemos à espera! Agora já falo de mim e dos meus, embarcámos era meia-noite, com os últimos passageiros na última camionete, já nem falávamos, nem sequer para nos lamentarmos ou recordarmos o que foi bom naquele dia, enquanto o sol brilhou. 
Mas ficou a recordação deste regresso atribulado, que passado algum tempo já nos fazia sorrir!

Água-Benta falsificada

 O Domingo de Páscoa em Montemor-o-Velho era um pouco diferente dos outros Domingos, no que refere às práticas religiosas. A Missa era celebrada mais cêdo, para que o Padre figura principal da comitiva, iniciásse a visita Pascal logo após, ganhando tempo para visitar todas as casa da Vila até à noite.

As residências já tinham beneficiado de limpeza intensa para receberem o Senhor Crucificado. Era colocada verdura e rosmaninho em flôr, no chão na entrada das portas que eram abertas de par em par. Em cima da mesa na sala lá estava o Folár para o Sr. Reitor. Num prato uma laranja grande com uma moeda em cima, era a oferta dos menos ricos que eram na verdade a maior parte. Os mais remediados optávam por uma nota de alguns escudos arrumada num envelope branco, e outros (poucos) juntavam também um cartucho de amêndoas. (um cartucho de papel feito pelo merceeiro)
A comitiva Pascal integrava o Homem que levava  o Crucifixo, mais outro com uma saca de brocado de côr carmim para carregar as laranjas, mais dois acompanhantes, e o homem dos foguetes. (este raro entrava, a menos que o chamassem para  um copito de vinho doce e uma fatia de bolo, do tradicional bolo da Páscoa) E havia mais dois personagens importantes (mais novos) o rapaz da Campaínha que freneticamente a accionava e aquelas badaladas ouviam-se à distância, sendo o modo de anunciar que o Padre já vinha perto, e o rapaz da Caldeirinha, uma espécie de balde de metal amarelo (luzidio nessa ocasião) onde era colocado o aspersor e a Água-Benta proveniente da Pia Baptismal e que havia sido benzida para o efeito.
Este grupo de voluntários disponibilizava-se para ir levar o Senhor a beijar, ás famílias crentes e eram todas, que não prescindiam desta cerimónia e a aguardavam ano após ano. 
Entravam nas residências, o homem da Cruz aproximava-se e o Padre dava o Senhor a beijar, primeiro ao pai e à mãe e de seguida a todos os que ali estavam reúnidos e ajoelhados respeitosamente. Aspergia água benta sobre os presentes, sobre a casa, felicitava, repetia Aleluias... havia sorrisos, havia alegria e votos de felicidades até ao ano na despedida.
Numa destas festas da Páscoa com tudo organizado, saiu a Comitiva da Igreja para dar inicio à costumada visita Pascal e já tinham entrado em muitas casas, iam animados, longe de pensarem em algum percalço, mas aconteceu; o rapaz da Caldeirinha escorregou nas pedras da rua e caiu. A Caldeirinha rolou no chão entornando a água toda. Gerou-se natural preocupação com o rapaz, mas logo passou pois ele não se tinha magoado e estava pronto a retomar. Mas faltava a Água Benta. Prestável como são todos os miúdos, logo se ofereceu para ir à Igreja buscar a preciosa água. Concordaram em esperar ali, enquanto ele numa corrida lá ia e voltava num instante. E ele lá foi apressado, mas a certa altura achou que ir à Igreja e vir era demasiado, então olhou à volta não estivesse alguém a ver, e cauteloso acercou-se da margem da Vala que existia na Vila, pôs um joelho no chão estendeu o braço e mergulhou a Caldeirinha. Atestada com o precioso liquido, limpou-a por fora com o lenço e, em passo normal reuniu-se á comitiva que o aguardava sorridente e lhe dispensou elogios.  
E lá andou todo o dia no cumprimento da sua missão, no entanto apreensivo, porque de vez em quando o pensamento lhe trazia um terrível receio, " E SE O PADRE CONHECE A  ÁGUA????? "

(também este texto é baseado num caso verídico, passado há cem anos)


sábado, 2 de outubro de 2021

O desejo do peixe...

 Foi há muito tempo. Fim dos anos trinta.


Era verão, e na quinta do Taipal em Montemor -o-Velho era grande  a azáfama nos trabalhos do arroz. Naquela tarde, aquele rancho de raparigas e mulheres mais velhas iam voltar a entrar na marinha retomando o trabalho, depois de terem enganado o estômago com pouco mais do que uma bucha e passado pelo sono, deitadas ali perto no chão agora duro e seco.
Uma delas adiantou-se e reparou que se aproximava um trabalhador com uma vêrga na mão cheia de peixes enfiados, luzidios, frescos... Alegremente, perguntou-lhe em jeito de certeza "foi ao peixe e trás muitos vai dar-me um peixe, não vai? " Êle carrancudo replicou "você esteve a dormir a sésta não esteve? " Ela assentiu, sorrindo. " Pois, enquanto você esteve a dormir eu andei na barroca a apanhar os peixes. "E seguiu caminho a acomodar a pescaria para depois também ele ir "ferrar" ao trabalho.
A tarefa recomeçou para todo o rancho, e algumas môças cantavam ao desafio, mas daí a pouco repararam que a Alice trabalhava mas, em silêncio estava a chorar. Com preocupação acercaram-se logo para saberem o porquê, mas ela algo envergonha evitava dizer a causa daquela tristeza que não conseguia dominar. Porém, as mulheres mais velhas, sábias pelas agruras da vida logo adivinharam... quem sabe se não o sabiam por experiência própria, eram tempos de pouco dinheiro, de comida magra e pouca. O organismo humano fálho de vitaminas, nestes casos, reage e aparecem os desejos incontroláveis tão conhecidos, na gente pobre... ela esperava um bébé estava á vista este desiquilibrio nervoso. Uma delas penalizada falou-lhe baixinho, "a Alice está a chorar por causa do peixe"... não, respondeu ela. "Está, está, e logo o meu homem está preso, se não, ele ia ao peixe e eu dava-lhe." O homem dela era pescador no rio, um bom homem, mas bebia e batia-lhe, ela gritava e a guarda ia e prendia-o, e no dia seguinte libertava-o. Outra companheira indignada dirigiu-se ao bruto como ela lhe chamou e avisou-o, se acontecer algum mal à rapariga somos todas testemunhas e vamos denunciá-lo na G.N.R. O dia terminou e com as companheiras ela regressou à aldeia que ficava distante da Vila, mas ao deixar a Quinta voltou o chôro. Então a prima Nazaré ofereceu, "olha lá Alice e se tu bebesses um copito de aguardente?,,, eu pago, vamos ali à taberna da leiteira" era uma tasca quase imunda situada à beira da estrada perto de Quinhendros. Ela não aceitou, mas riu-se, o que já foi um progresso.
  

sábado, 4 de setembro de 2021

Foi há um mês, em principio de Agosto...

 Adeus Amiga,

No ano passado e neste, tenho visto partir na viagem sem regresso quase todas as minhas amigas. Agora foi a Lurdes, a Lurdes Caiado, foi há uns dias... porém, não é com a cortina de terra que cai sobre o corpo, que se me apaga da memória todo um passado longo de amizade recíproca; e por isso escrevo mesmo com atraso. Eu sou mais nova do que ela, mas cêdo as brincadeiras na rua nos aproximaram. Mais tarde na juventude todos os dias nos víamos, todos os dias falávamos. A Lourdes era empregada no Posto Sezonático e eu no Stand Oliva perto da Praça da República. Dia após dia pela hora do almoço a Lurdes aparecia, nós tínhamos sempre o que dizer. Ela já namorava o Zeca, um rapaz bonito (como ela era também) que toda a gente estimava. E naquele sábado depois de falarmos doutras coisas, ela disse para mim, "amanhã vais ao Baile, não vais?! É que eu não vou não posso ir. Mas tu vais?" respondi afirmativo. "então vê se o Zeca vai dançar e já agora com quem e depois na segunda - feira dizes-me..."
E na segunda lá aparece a Lurdes ansiosa... "E então? O Zéca dançou?
Respondi, que sim, dançou. "E foi mais do que uma vez?" - Foi várias vezes e sempre com a mesma. "A sério ?" (a Lurdes perdeu o sorriso) "e quem é ela? " - E a rir respondi-lhe, EU !
Rimos as duas abraçadas enquanto ela murmurava "contigo não faz mal."
Depois a Lurdes casou, com o Zeca, e foi viver perto de mim, nasceram os meninos uns amores de crianças... entretanto eu casei, deixei Montemor, mas assiduamente lá estavam as saudações da Lurdes para mim, nas cartas que a minha amiga Arminda me escrevia. Anos depois passei a residir na Figueira perto de Montemor e voltámos a encontrar-nos, tantas, tantas vezes... e nas procissões era de certeza e sempre. Depois da procissão recolher, e o Padre dizer que podiam levar os cravos do andor, ela acercava-se apanhava alguns e dividia - os por mim, dizendo leva este três prá tua mãe.
A ultima vez que vi a minha amiga foi na última Procissão em que eu estive e por isso, eu nunca a vi doente. Foi com grande mágoa que vi a sua fotografia actual nas redes sociais. É a realidade eu sei, ninguém a pode alterar.
Contudo, e perdoem-me a teimosia, eu quero continuar a ver a Lurdes Caiado uma linda jovem, uma linda noiva, uma linda mamã, uma linda avó, e mais tarde uma bonita senhora sempre de sorriso nos lábios e simpatia eterna. Ela foi tudo isto, incluindo os valores morais e familiares que sempre nela habitaram.
Foi uma vida linda como ela era, chegou ao fim e está em paz!
Licínio Cadima Rosa Carreiro, Mário Silva e 15 outras pessoas
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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Já passou um ano. 25 . 8 . 2020 / 25 . 8 . 2021

 Foi há vinte cinco anos, mas é assim que eu quero recordar a minha amiga Arminda. Ela sempre esteve comigo nos maus e nos bons momentos. Este foi de alegria, a festa de casamento da minha filha. Num video que guardo, tenho a Arminda a dançar com o marido, e bem, porque ambos eram exímios na dança. E enormes no trato, na educação e na amizade que sempre me dedicaram. Hoje recordo tudo de lágrimas nos olhos. Perdi a minha maior amiga, a minha irmã mais velha como eu lhe chamava, e não é de ânimo leve que aceito esta triste realidade.


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Os Mêdos

 As pessoas cultivavam a superstição, toda a gente tinha algo de sobrenatural para contar, que alguém tinha visto. Falavam sem evitar que as crianças ouvissem, e assim eram elas (mais tarde) o veículo transmissor desses episódios então já apontados como verdadeiros. Estamos em Montemor em anos bastante recuados.

Na Vila haviam locais especiais onde "apareciam" os mêdos, e ai de quem duvidásse de tais afirmações. Na Rua Dr. José Galvão pelas dez horas da noite (hora dos mêdos) um caixão a rastejar atravessava a rua e, sumia-se num bueiro grande que existia encostado à casa do Fidalgo José Fortunato; hoje tudo  desaparecido, casa, bueiro e fidalgo. Outro local apontado era um pôço (de água) empedrado situado numa terra do mesmo Fidalgo, na estrada que liga a Vila à Barca, já perto da antiga Ponte.
Mas não menos assustador era a baixeira do Cano, frente à Quinta do mesmo nome, a caminho do Areal e do Moinho da Mata, e é aqui o local desta história:
- Mariana era costureira e ia costurar aos dias na casa das freguesas. Ia a pé e carregava a máquina de costura à cabeça, chamada máquina de mão, porque isenta de pedal, tinha uma manivela que era acoplada à roda e acionada pela mão da costureira. Começava o dia manhã cêdo e terminava ao entardecer. Ainda comia qualquer coisa, e só depois regressava a casa. E foi no regresso dum desses dias de trabalho em casa duma família no Areal, que ela se encontrou com a comadre Júlia também de Montemor, e juntas encetaram caminho animadas pela companhia recíproca, e um tanto apressadas pois ao longe já eram visíveis as primeiras estrelas pontilhando o céu, e também porque a baixeira do Cano lhes causava receios. E nesse sentido a conversa entre elas recaiu imediatamente nas aparições estranhas. "Eu nunca vi nada, dizia a Mariana, mas acredito que alguma coisa há-de haver, ao tempo que se fala nisto, isto já vem de trás... e tenho mêdo!" 
- "Pois, pois, dizia a comadre, eu também nunca vi nada, mas já a minha avó contava aquela da Galinha preta, grande grande, maior do que uma pessoa, batia as azas fazia barulho e vento que levantava o pó do chão. Eu tenho muito mêdo não gosto de aqui passar assim mais tarde, mas ás vezes  lá tem que ser..."
- Como a noite se aproximava, o filho da costureira ignorando que a mãe teria companhia, resolveu ir ao seu encontro. Ao vê-la ao longe, acompanhada, pensou numa brincadeira. Escondeu-se atrás duma árvore e esperou, deixou-as passar e em passo ligeiro mas leve foi atrás delas, aproximou-se bastante e quase encostado fêz um valente assôpro que naquele silêncio soou bem audível. Ambas deram um grito, a Mariana deitou a mão á máquina e em simultâneo agarraram-se uma á outra, para logo se soltarem e  desatarem a correr estrada fora sem olharem para trás. O rapaz que esperava uma risada e tal não aconteceu, já estava arrependido, e corria enquanto gritava "esperem, esperem, sou eu, esperem..."  Não esperaram nada, e só quando pisaram o chão da Vila e as fôrças começavam a traí-las, é que pararam e a mêdo olharam para trás.
E ali estava a razão de tanto mêdo, uma diabrura do filho da Mariana e afilhado da Júlia. Agora incrédulas quanto à situação que não esperavam, olhavam o jovem e não sabiam se haviam de ralhar, de rir, ou de chorar, pois o rapaz, arrependido, tinha perdido o riso, e um jovem triste faz pena. Decidiram-se  pelo riso, e quem sabe se depois disto não passaram a desvalorizar este género de mêdos que desde a infância acatavam?! 
.   

quinta-feira, 25 de março de 2021

Versos lindos!

 Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Confissão...

Há uns anos,

Mudei-me para o novo quinto andar
E passei a viver cá nas alturas,
Custou-me mesmo muito a habituar;
Olhar pela janela fazia-me tonturas...
O sêr humano a tudo se habitua
E a minha pessoa não será excepção-
Já não fico perturbada ao ver a rua,
Nem ao pensar a que distância estou do chão.
Mas recordo o desânimo e o mêdo,
Que me assaltavam na noite e madrugada,
Tudo se conjugava pra meu desassossego;
Até no elevador fiquei trancada!
Aos poucos vi então tantas belezas
Que só do alto os olhos podem vêr;
Mas que saudade das casas portuguesas
Que nas aldeias ainda hão-de haver!
Sem grandes escadas, sem elevadores,
Com amigos que lá são os vizinhos;
Canteiros ás portas, muitas flores,
Pássaros trinando; e nos beirais, os ninhos.
(Dília Brandão Fernandes)